10/12/12

Coração Entediado


Quando ele, o Roberto regressava de São Vicente, aos domingos a gente ia jogar a bola. De segunda a sábado, sempre depois do almoço, ele e o Marcelino iam deitar de costas para o chão no fundo de um rego em baixo de uma mangueira. Os seus corpos frescando sobre uma respiração afável da terra, enquanto iam conversando sobre os ciclos da agricultura e as coisas passadas na sua ausência, para chamar o sono. Sempre um dormia primeiro e o outro por alguns segundos ou minutos continuava conversando sozinho, até que o sono dele chegava. O dele não sei, (se fosse hoje eu lhe perguntava) mas o dele, Roberto, seu sono, era um meio sentir de cosmos, sonhos de meio acordado, num brilharete do vento dançando sobre as folhas da mangueira. Era um sono meigo, que repunha as energias eléctricas do seu corpo. Era um sono leve, de lavar e purificar, de deixar tudo no seu lugar e num estado de absoluta mansidão, naquela ribeira onde durante a tarde, só se ia escutar o repercutir da enxada volvendo e formando finos caroços de terra molhada. As tardes eram de dois solitários. Eram do esforço físico de execução do trabalho que cansava o corpo, mas que electrizava os nervos, deliciava os ouvidos, aquele barulhozinho comparado de enxadas, quase sempre como percussão de tambores de pele bem puxada. Ensinou-lhe tanta coisa, sobre agricultura. E sempre lhe convidava, àquele tal gesto de escorrer um trago pela garganta, bater a mão afirmativamente no peito.
 - Material bom da terra.  
Geralmente acordavam, logo que as primeiras sombras começassem as descer pelos cantos do círio. Ele tirava a preguiça do corpo, tomava um trago e repetia sempre.
- Esta vida é dura, não fui mas tu tens que continuar na escola.
Retomavam o trabalho da enxada para o que faltava do dia, ele mais treinado do que ele, o estudante chegado de São Vicente, pele clareada pelo arzinho do mar de Mindelo. E ainda já grande, quando deixava a ilha chorava sempre, as vezes três dias seguidos. Por isso, e hoje quando seu coração fica entediado, lembra que não gostava de ver o barco atracar, jogar-se nele como piolho, no mar sem figueiras, nos braços e nos balanços do mar de São Vicente.