Três Estações da Lisboa Hermética:
O Retrato da Cidade; Eu
na Caixa e o Outro Inventado
|UM|
[…] A menina Maria Helena já pode abrir a pálpebra e aceitar
a luz líquida das Águas Livres; alcançar a varanda e pedir o pão-nosso de cada
dia pela injecção da morfina na seringa; penhorar a escada e subir ao
quinquagésimo primeiro andar e resgatar os anões da Branca de Neve da gaiola, enquanto
o radiologista do tráfico rodoviário dita os erros ortográficos da cartografia
da cidade aos varredores de rua. Falta um degrau abaixo do nível do Mar de
Carcavelos para que o diafragma capte a baleia submergindo com ajuda duma
colher de chá no aquário. Bom dia, senhor Herculano! É notícia nos semanários
que os gatos-pingados retiraram-se das rampas dos parques de automóveis e dos
telhados à beira do rio — territórios onde os tigres acasalam ovos de perdizes
com os marinheiros do Cais de Sodré. Na surdina, nos canteiros da Praça da
Alegria, os Erasmus enrolam com os grilos nas unhas da Graça-nocturna. E por
cima do ombro do Bairro Alto — originalmente feito a lápis de carvão — a sair da
janela, o sono é impensável sem que o sal da electricidade sintonize: o sofá
espatifado, o gato preto, o sonho e o poeta. Este sonho ridículo, o gato enganado
no sofá e o poeta a beber o fumo de cigarro no escritório da advogacia; são
naturalmente a Cidade de Lisboa no Outono de 1910 a inclinar-se [o navio] até a
borda para chegar à água. Da rua Augusta à Praça de Comércio, os amantes limpam
a correias das bicicletas, laçam cores quentes do arco-íris na gola da camisa e
duas doses de doces caseiros nos lábios. No Beco da Amorosa a moça de vestido
vermelho usa a língua para acender a vela e transforma as árvores em animal de
corrida, carregando no dorso as paixões cinematográficas. Relinchos de éguas no
relógio de parede; pontapés atléticos do feto a forçar para sair do estuque
podre dos soalhos e Lisboa pulsando com a circulação dos eléctricos a queimar
nas veias. A camioneta setecentos e cinquenta e cinco pára a meia distância da
Primavera na estação dos cabo-verdianos, com o polegar sustendo os nós cegos da
Ponte Vasco da Gama para que não desamarrassem com a queda eminente de chuva no
guarda-roupa. Um rasto de pó de estrada esvoaça atrás do navio que devagar enfia-se
na barra; e com isto: o estranho cicatriza ao acender do cigarro; ajeita a gabardine
e esgota no primeiro bafo de fumo. O forasteiro de cigarro e gabardine, não é
lisboeta nem estrangeiro — lúcido louco é a alma de um cão vadio; o cronista
das avarias técnicas dos operários dos telecentros farejando pastéis de nata
nas arruelas de São Bento. Vagueando pela Santa Apolónia com um chapéu esburacado
e a sorrir para o Hércules sisudo que sumiu com a invasão napoleónica dos
gafanhotos do império egípcio decorria o século dezanove. Lisboa toma forma de
um copo com água: a menina com a cabeça nos joelhos, ao tocar os lábios no
rebordo da chávena pressente a vibração dos transeuntes duma ponta a outra de
Martim Moniz — e a gota de água é o mundo agarrado à roldana a encerrar a
encenação quotidiana ao desligar a televisão. Um cão brinca ali longe na
esquina com as folhas secas evoca de quando a gente o tem na mão; a bailarina
em movimento de peixe carregado nos ombros os guardadores de rebanho e a
fluvial entrada do Tejo pela greta da porta a mastigar o próprio rio pela
orelha. Zapping ininterrupto de citadinos: dando comida japonesa aos pombos; cortando
maçãs ao meio para dar partida aos que correm atrasados para os transportes
públicos; a limpar bancos da praça com o frio dos mendigos a urinar para o chão
num gesto de marcação da comarca; a descerem do autocarro sem tirar o olho do
navio e a acariciarem os candeeiros com os fósforos do Verão que trazem os
turistas para sétimo piso da colina do Castelo de São Jorge. No cronoscópio dos
sóis as pequenas transparências da água na tigela a diluírem os itinerários dos
pássaros que amadurecem nas árvores das alamedas. […]