07/01/13

Mar-blues: sodade, oh mar, oh gente…




I.      
       
O mar, para além de ser uma tela gigante, aporta memórias de outros tempos, lugares e sonhos. Traz ainda o sopro sinfónico que atravessa às ancas do tempo, na salutar festa de São João de moças de «rabolas» incandescentes na rosca-rosca com os rapazes da terra. Brios soltos no palavreado regional, no encontrão de sexos na peleja do refeitório pagã. Gestos sortidos e curtidos entram em transe. Mocinhos e mocinhas, de Santo Antão e São Vicente, recriam a tragédia na orgia, no caos de guerra fria. Os corpos se trançam; fermentam-se no pousio do desejo. Os ritmos frenéticos se intensificam em cada rufar do tambor. Trata-se de ritos de passagem. Os corpos disciplinados se indisciplina, quebra a rotina do dia-a-dia. As enxadas encontram a paz nesse dia, já não fere o chão. A brisa do mar sopra de mansinho para as ilhas; esfria os corpos e cristaliza os desejos. A carne é exorcizada com a mudança do tempo. A festa dá lugar ao trabalho. Aos afazeres domésticos. Os desejos da carne são mais secretos. Os corpos dos desejos voam para as suas casas, lugarejos da sua santidade. O sopro do mar, na contra corrente, cruza para outras ilhas. Vai ao Fogo para apagar o vulcão.

A bandeirona também exorciza os maus ares no rufar de tambor. No cotejar sincopados de sons fatigantes, de corpos curvos e trémulos que o grogue fermenta. A brisa do mar traz brio no corpo das ilhas. As várias almas do tempo, no compasso de um caminhar caótico, seguem em transe para vários vales, cutelos e cidades da ilha. O tempo metamorfosea a vida. Sacrifícios dos animais que choram a sua morte, de olhos arregalados que gotejam berros. Facas de golpes e em contragolpes, de corpos caídos no palanque da festa. Os caldeirões fumegantes e cantantes dão azia aos convivas, enquanto esses cheiram e snifam a morfina da fome. Na ilha do Fogo, a romaria começa ordenada com antecedência. Os patronos conspiram os desejos e consumos; arranjam a urbe para o carnaval fora do tempo. Líquidos brotam do vulcão, sacodem as almas no canavial de São Filipe. No sopé do vulcão faz-se os primeiros acordes para uma nova largada. O sentido é cruzar vários pontos das ilhas no salutar momento harmónico de convívios. A bandeira é desenterrada para vencer o céu. Bradar ao céu para dialogar com o sol e a lua. A lua «noba» de corpos de desejos que se hospedam no vulcão. (continua).