11/02/13


Três Estações da Lisboa Hermética:
                                                                                                                 O Retrato da Cidade; Eu na Caixa e o Outro Inventado





|UM|

Entra o navio mudo pela ranhura da foz do Tejo indefinido e espaçoso na minúscula retina ao se abrir a persiana para a fora do Universo rectangular. E o silêncio madrugador é um arfar cansado e aquoso do cavalo lusitano a jorrar nas escadarias de Alfama. Um comboio enferrujado pelos seus cem anos de corredura desagua a trote no Rossio para se esconder do frio de janeiro na pelugem do gato. Os borrões nos alcatrões são marcas traçadas a giz, onde, estão guardados os botões dos cochichos do Mercado da Ribeira. Todos os recados arcaicos da Moraria trancafiados nos estojos de costura; no umbral da porta, as idosas a envelhecem com os estuques em ruínas nas paredes das casas da Baixa Pombalina. Num exercício de memória a velhota prega com a mola de roupa as fotografias [a preto e branco] na corda do estendal que puxa o Elevador da Bica para a mesa da cozinha. O Navio continua entrando mudo pelo rio, sem explicar este gesto convencional nos exames sociais do mundo; dois milhões de telespectadores arrastam nas pedaladas da máquina de costura este animal de aço para o canto miudinho da sala de visita; perde-se o rebanho na Estação de Metro de Saldanha e os guardadores de gado jogam pedra na sorte pontiaguda de acertarem nas fontes rasas das árvores do Jardim do Príncipe Real. E naturalmente, já se viu que o Tejo é um rio manso e adequado para lavar o rosto do estrangeiro-pastor carregada as cavalitas na porta-bagagem do taxista. O puto reguila esfrega a ponta dos dedos no vidro da montra, tarraxa a chuva dos fins-de-semana num frasco transparente — onde tem alojado os insectos fosforescentes num frenesim de bicho cabeceado a tampa do frasco causando mau tempo dentro do recipiente. Alguns gaiatos do bairro do Campolide destruem grades e engenhocas dos edifícios altos — como os aparelhos do ar condicionado do Hotel Sheraton e das Torres de Sete Rios. Para no final da tarde acharem mais piada arremessar objectos cortantes aos aviões, de modo, a desmancha-las as asas de cartolina coladas com cola branca. Lisboa acorda a ensaiar o voo das andorinhas, o gato aconchegado no sofá espreguiça e corre para espreitar pela greta do cadeado da maleta se a Ponte 25 de Abril conserva aquela frescura de fios de cabelo fechando o rio numa lagoa, pronta para ser subalugada ao inquilino elefante que usa orelhas como barbatanas.[…]