Três Estações da Lisboa Hermética:
O Retrato
da Cidade; Eu na Caixa e o Outro Inventado
|UM|
Entra o navio mudo pela
ranhura da foz do Tejo indefinido e espaçoso na minúscula retina ao se abrir a
persiana para a fora do Universo rectangular. E o silêncio madrugador é um
arfar cansado e aquoso do cavalo lusitano a jorrar nas escadarias de Alfama. Um
comboio enferrujado pelos seus cem anos de corredura desagua a trote no Rossio
para se esconder do frio de janeiro na pelugem do gato. Os borrões nos
alcatrões são marcas traçadas a giz, onde, estão guardados os botões dos cochichos
do Mercado da Ribeira. Todos os recados arcaicos da Moraria trancafiados nos
estojos de costura; no umbral da porta, as idosas a envelhecem com os estuques
em ruínas nas paredes das casas da Baixa Pombalina. Num exercício de memória a velhota
prega com a mola de roupa as fotografias [a preto e branco] na corda do
estendal que puxa o Elevador da Bica para a mesa da cozinha. O Navio continua entrando
mudo pelo rio, sem explicar este gesto convencional nos exames sociais do mundo;
dois milhões de telespectadores arrastam nas pedaladas da máquina de costura este
animal de aço para o canto miudinho da sala de visita; perde-se o rebanho na
Estação de Metro de Saldanha e os guardadores de gado jogam pedra na sorte
pontiaguda de acertarem nas fontes rasas das árvores do Jardim do Príncipe Real.
E naturalmente, já se viu que o Tejo é um rio manso e adequado para lavar o
rosto do estrangeiro-pastor carregada as cavalitas na porta-bagagem do taxista.
O puto reguila esfrega a ponta dos dedos no vidro da montra, tarraxa a chuva
dos fins-de-semana num frasco transparente — onde tem alojado os insectos
fosforescentes num frenesim de bicho cabeceado a tampa do frasco causando mau
tempo dentro do recipiente. Alguns gaiatos do bairro do Campolide destruem
grades e engenhocas dos edifícios altos — como os aparelhos do ar condicionado
do Hotel Sheraton e das Torres de Sete Rios. Para no final da tarde acharem
mais piada arremessar objectos cortantes aos aviões, de modo, a desmancha-las
as asas de cartolina coladas com cola branca. Lisboa acorda a ensaiar o voo das
andorinhas, o gato aconchegado no sofá espreguiça e corre para espreitar pela
greta do cadeado da maleta se a Ponte 25 de Abril conserva aquela frescura de
fios de cabelo fechando o rio numa lagoa, pronta para ser subalugada ao
inquilino elefante que usa orelhas como barbatanas.[…]