30/01/13



Cata-ventos calçados pontapeiam os ossos urbanos
as pontes árticas nas veias de água (ou coisa assim)

A placenta do universo e a encubação da Lua
avessas às terapias fêmeas da ternura da ave

Estourar as árvores pelas suas vértebras
Aparafusar os pontos cardeais nas pernas

A aparência dobrada a queima-roupa
no dorsal eloquente da pera rocha em queda livre no nulo

A bruma versátil entranhada
no vazio absorvente das trincheiras      
adoçadas no desabotoar incidente do oceano
na saliva dos bichos de martelos

A reação química dos aborígenes à curvatura do arco
Dados lançados e tocam-se as flautas sis sisos da poesia.   



Lisboa, Portugal

28/01/13

Espelho meu


Num punhado de vazio acorrentado
A esperança fértil e concomitante
Pingava nas veias daquele coitado
Enquanto fugia pela vida adiante

Vil estrada que animava o cansaço
Em dose de lágrimas amordaçadas
Numa mocidade fria e sem espaço
Repousavam as lamurias esgotadas

Espelho meu, amado espelho meu
Vejo em ti o eu que nunca existiu
Abraçado pelo amor que o esqueceu

Espelho meu, quem é que me mostras?
Sou a presença de quem sempre desistiu
Não há vida, aceitas as minhas apostas?

23/01/13

Diário de um thug



Corria pela rua acima quando a boca bedju fez de mim um espantalho. Não era preciso plantar o milho, nem afugentar o santchu para dar conta do meu espanto e dos gritos ensurdecedores que povoavam o universo do bairro. O grito era imponente, valente. Seguia em vaga de screem que levava a sua irra ao parlamento e palácio do governo. No horizonte, as estrelas cadentes cruzavam num ritmo frenético, riscando as letras da vida, uma nova alma em viagem. Na terra firme, os responsáveis da terra, dormia num eco de silêncio.

A irra da boca bedju fez o meu corpo estremecer. Engoli em seco, o meu coração dançava em batucada de inquietação e de medo; o meu coração não parava de «tuntunar». Algures, naquele momento, a Josefa desatinava aos gritos, choros estridentes que pesam na memória; a sua voz começara a deslizar na onda cartesiana que teve a harmonização nalgumas vizinhanças. A casa da Dona Segunda era o local de romaria. O ambiente era pesado, confuso. Há muito que não se ouvia tamanho prenúncio da desgraça no bairro. O vento trazia a música da desgraça: «Ai Pedrinho, Ai Pedrinho…Ai Pedro». O Pedrinho era a vitima de uma emboscada perpetrada por um grupo de thug; dos seus 47 anos, Pedrinho era o profeta e polícia do bairro. Era ele que se encarregava de levar o alho e a arma de prata para caçar os vampiros do bairro. Qualquer sinal de denúncia, o Pedrinho ou chamava a polícia ou dava curativos nos bandidos. Por ser altruísta levou o «troco» por defender a comunidade.

O seu corpo parecia uma escultura de pirâmide de Egito. Homenzarrão que não condizia com o seu nome; 2 metro de porte, peitudo e de mãos largas, com a cara de Malcom X. Da sua escultura jorrava os fluidos que serpenteavam na planura vermelha de chão ferroso. O vermelho do chão lacrara uma vida perdida.
(...)

21/01/13


Com o círculo e ciência
podemos dobrar as asas
para que o mar  voe
e com a outra mão desenhar
com lápis o silêncio

Traçar no papel
a alegria as praias de banho
entupidas de esqueletos

Secreto o menino cresce
um pouco dentro de tudo
na companhia por vezes das moscas
e no fogo que partilha

O vazio do jardim dói
pela multiplicação do pão
– o pão transparente, obeso
em comparação com os instrumentos
músicas mais para o fôlego
do que para a respiração.


Lisboa, Portugal

19/01/13

Deixa-me tocar-te


















Deixa-me tocar-te,
Deleitar-me nos teus encantos.
Deixa-me embalar ao som das tuas doces cordas musicais
Encontrar-me na tua perdida voz de aura enternecida.

Deixa-me pousar minha cabeça nas tuas mãos
Sentir teus calos a estalar na minha pele
Teu suor a escorrer pela minha face,
Dizendo-me baixinho ao ouvido
Todas as suas histórias
Suas desavenças e reconciliações de vida.

Deixa-me desvendar-te,
Tocar-te nas tuas cordas e compor-te uma canção.
Deixa-me seguir teus passos
Olhar no fundo do teu mar e não me intimidar
Com o barulho das tuas ondas.
Seguir em frente
Mergulhar na tua alma de artista
Entranhar-te nos ossos
Nos lábios
No sangue.
Desenhar tua escultura na minha essência.

Deixa-me ser tu em tudo
Deixa-me copiar-te em tudo
Deixa-me olhar para ti como meu mundo.
Deixa-me fazer de ti minha intimidade
Minha vitória
Minha história.
Deixa-me possuir-te como se já não fosses ti próprio.
Deixa-me ser tu.

18/01/13

É a minha sensação


                           É a minha sensação 

De um pensamento sem sentido,
                a mentira sobre o destino,
                  os meus caminhos se formam.
                      Confuso entre a física e matemática, 
                              procuro compreender a natureza da tua beleza

Na noite, iluminada pela lua
        sem direcção ando pela rua. 
                 Entre cruzamentos e as leis
                           perdido na minha sensação.  

De tudo que eu ouvi
       das palavras magicas que usaste,
              do que as palavras fizeram me sentir,
                               há leis que eu não podia cumprir,
                                     momentos que perdi, as lágrimas caíram.
                                                  É a minha sensação

     No mundo que ando
               o caminho percorrido
                            é a ti, que eu entrego
                                      sem sinal para voltar atrás
                                  
                                            É a minha sensação 

16/01/13

O OUTRO

















As águas que passam deixam uma torrente de ar que me transporta às peregrinações do mundo. Metamorfoses de um corpo único, trilhado pelos sons da vida que carregam os males da alma e também as alegrias, dependendo do olhar com que se vê. Dependendo também do tempo e do espaço.

Piso com estes pés de cal sobre a terra molhada que dissolve este ar impregnado de nós, de pontos em retalhos. Alimento minha alma com este esplendor que me toca as vestes, que me toca a pele e desnudam os sentidos impostos, os padrões recalcados pela vida no côncavo dos meus sentidos.

Saio por instantes deste casulo e consigo ver o outro, consigo ver-me a mim própria. Toco por instantes este corpo único que nos funde e paro no tempo, por instantes, a pensar que não há limites nem pontos finais. Há sim continuação das coisas. Há sim eus vários que desconheço, para além daqueles em que me fixo para analisar o mundo.

De repente vejo que não estou só. Continuo assim o meu percurso, único, mas sem deixar de olhar para além disso.

14/01/13

Tóta Barela ku Tótó Monteru (Nhu Anu Nobu)


TÓTÓ – Homi qui kré passa kâ sabi
É cássa ku mudjer tagarela
Ali ‘m cumâ porta sem tchabi
Na dés qui ‘m djunta ku Tóta Barela
Góssi li sim logo lá
Tardi lá Grecha també
Pundi qui bu sai é Tóta qui flá
Tóta stâ sima tchota galé
TÓTA – Kâ tem pâ mudjer mâs injúria
Qui cássa ku homi moquêro
Ali ‘m ku fidjos na penúria
Na dés qui ‘m pari ku Tótó montero
Ora na bar ora na badjo
Ôtro ora lá na fornodja Cunta
Tótó mufino Tótó bandadjo
Tótó stâ sima Qui crúxa munta
TÓTÓ – Si djâ bu kré pâ nu passa piada
Ôbi cussé qui ‘m tem pâm flábo
Bu tene côxa bu stâ cunfiada
Djâ bu squêce modi qui ‘m atchabo
Ku lanciado tracolado
Lenço nha pilota pano brasa
Tóta pobre Tóta mariado
Tóta tâ anda cadidjo tâ basa
TÓTA – mal é duê boca é pâ pâpia
També djâ bu squêce tempo bédjo
Cantu bó era santho tâ câmpia
Inda êl stâm claro cumâ spêdjo
Ku camissona di russinha
Sem calça na caram di corpo
Cabeça piôdjo pé di pulguinha
Tótó ku lama sima um porco
TÓTÓ – Tóta bu tem cara labrada
M’ cássa ku bó bu fassém bu cuêdjo
Bu dexam ku águ na labada
Calça ramangado ti tâ bâ duêdjo
Bu nganam ku cússa di meu
Pâm anda só ku rosto na tchon
Tóta flâm na quêm m’tâ trá tchapéu
Si é na Morgado ô na Patron
TÓTA – Bu kâ conchi côbi bu horta
Pâ modi nunca bu foi labrador
Ês alébi pôco mi ‘mporta
Tótó bu kâ dexam dábu nha flor
Bu sirbim pâ tres fidjo mandioca
Um liton barriga di bosta
Cu ‘m cabritinho pé di soca
Tâ subi porta tâ cai di costa
TÓTÓ – Bu tem razon djâm dábu corda
Bu pôdi flâ tudo sem concêncha
Dá cego luz é misercorda
També é um átu di pachêncha
Si mi era moquêro mufino
Pâ modi Tóta bu córre nha trás
Si djâ bu creba ôtro distino
Djâ temba Tóta ôtro rapaz
TÓTA – Quêl gó é sina tudo mudjer
Pâ mar pâ rotcha pâ céu ô inferno
Nunca nu cúda modi êl tâ ser
Candu nu stâ na nôs inverno
M’ crebo tcheu cumâ nha truz
Bó é só di meu m’ tâ dâ um brinde
Tótó pâ mâs qui nu kré cúscuz
Nu kâ tâ trâ nariz pâ nu fássi binde

Nhu Anu Nobu ( Fulgêncio da Circuncisão Tavares)

13/01/13

Metáfora Definição do Batuque 

Entre as muitas mulheres que improvisam almofadas fofas para as pulgas das crianças traquinas; nha Nácia Gome (sem usar o compasso, esquadra e régua) é quem melhor deu espessura à cadência e concavidade da composição musical do batuque. Esta música arrepia o sono e coito interrompido das badias do Oráculo. Pergunte ao meu cão de guarda tisnado na pelugem pela nódoa das bananeiras — que espreguiça no regaço que a minha mãe aquece para me acariciar — para comprovarem a verdade de que o gato [com a sua antena de insecto] dança batuque e tem a mania esdrúxula de que consegue alcançar num disparo a cabeça no primeiro som da batucada. Nunca se conseguiu esta façanha de ouriço-do-mar, de respirar com a cabeça dentro duma tina de água, mas diga-se de passagem: em todo o interior da ilha de Santiago a imagem preto e branco de Cabo Verde engrossa todas as pedras para dar lugar às algas. A terra-mãe obriga ser lavrada nos repisados passos da txhabeta[1], o rebolar do quadril da menina-moça no semicírculo erótico — da gema do cio e do acasalamento — é o primeiro lugar do mundo onde se perde parte da inocência. No terreiro a exibição e as nádegas obedecem o ritmo compassado e frenético das batucadeiras; a mão-cheia que distribuía  doces de coco aos filhos, é que faz repercutir um eco açucarado numa repercussão instrumental que sobe litros de sangue à cabeça do cavalo. Acredite que toda a mudjer di fora[2] tem a sonância verbal do mar na garganta, e é habitualmente obcecada pelo cântico dos grilos e o crepitar do Sol plástico na sementeira — ofício da enxada no fogo que partilhamos no almoço.         



[1] Passos frenéticos e compassados de dança 
[2] Mulheres de meio rural ou do campo

Incenso

















Poeiras,
Apenas poeiras.
Poeiras da minha alma,
Que me desafiam e me limitam os sentidos.

Olho para os lados
A procura de beleza,
Pura beleza!
E não vejo nada que me cure da minha sorte.

Poeiras,
Apenas poeiras,
Que emanam do meu olhar
Poluindo o ar.

Levanto-me do chão e olho pró céu
A espera que me acalme
E num grito de dor e desespero
Encontre minha pele nua,
Minha pele escura,
Soluçando minha ausência,
Meu desalento.

Caminho…
Os meus pés descalços
Pisam no chão pedrado pelo calor do sol.
 As pedras que me ferem,
Ferem o meu corpo apenas.
Uma dor menor, muito menor
Do que aquela que sinto e não tem cor.

Viajo ao sabor do vento,
Só, ao sabor do vento
Que me transporta
 Para os segredos da minha existência
E eu tento lá no fundo de mim
Descrever as sensações que me provoca.
E continuo a caminhar
A procura de qualquer coisa
Que me cure deste vazio sem nome. 

12/01/13

NHO DJONSINHO


 DJONSINHO

D             Deus quis que mais uma estrela
J              Jamais deixe de brilhar no Céu....  
O            O astro é Nho Djonsinho
N            Neste momento de dor e de perda
S             Sentidas condolências minhas envio
I              Inda que é mais que certo que ele continuará
N            Na obra e na musica deixada
H             Hoje partiu o grande homem de cultura
O            O sonho e a obra permanecerão eternamente!

11/01/13

Iva Pinhel Évora: A Mãe de Amílcar Cabral

Sabe-se actualmente que Iva Pinhel Évora nasceu talvez no sítio de São Francisco, no concelho da Praia (Santiago), a 31 de Dezembro de 1893. O pai, António Pinhel Évora nasceu na ilha de Santiago, era lavrador e tinha “uma bela caligrafia.” Sua mãe, Maximiana Monteiro da Rocha era igualmente natural da ilha de Santiago, foi lavadeira e não sabia ler nem escrever. Iva foi baptizada na Igreja de Nossa Senhora da Graça, Praia, a 13 de Junho de 1894. Foram padrinhos João F. Pereira de Mello e Mascarenhas (solteiro, caixeiro) e Amália Cândida Nunes d’Aguiar Alfama (casada, proprietária), ambos residentes na cidade da Praia (cf. Almeida, 2004: 4).

Patrick Chabal (1983: 29) havia afirmado que Iva Pinhel Évora “came from a very modest São Tiago family and did not receive any formal schooling at all.” Porém, existem também informações que contrariam tal asserção. Com base nas entrevistas realizadas aos familiares desta protagonista, Julião Soares Sousa (2011: 44) assegurou que, “à semelhança dos restantes irmãos, Iva Pinhel Évora apenas pôde completar a instrução primária.” Para além disso, conforme certificou José Maria Almeida (2004: 4), tal como o seu pai, ela tinha “uma bela caligrafia.” Tendo em atenção que, ao tempo, a maioria da população feminina não tinha facilmente acesso à educação formal e muitas mulheres permaneciam analfabetas ao longo da vida, pode-se perceber que o facto de ser originária de um dado meio geográfico, onde havia um certo número de estabelecimentos de ensino primário, e filha de pai com alguma instrução teria favorecido a sua ida para a escola, ainda que ela não pertencesse aos estratos mais elevados da sociedade.

Em 1922, quando tinha 29 anos de idade, ela emigrou para a Guiné, com o seu primogénito de nove meses (Ivo Carvalho Silva, nascido a 24 de Novembro de 1921) e o seu companheiro (João Carvalho Silva, que seria funcionário das finanças nessa outra colónia). Mal aportaram na Guiné, tal relação chegou ao fim. Ao que se sabe, nesse mesmo ano, Iva Pinhel Évora conheceu Juvenal Cabral, o seu futuro companheiro (Chabal, 1983: 29; Sousa, 2011: 44).

De acordo com o historiador guineense Julião Soares Sousa, existe uma nota administrativa, escrita na véspera do Natal de 1923, revelando que “outra mulher, residente em Bafatá, tinha entrado na vida de Juvenal Cabral, o que certamente justificava as frequentes ausências deste do seu posto de trabalho em Geba.” Tal nota, da autoria do administrador, informava que “essas ausências eram motivadas pela necessidade de fiscalizar o negócio de uma ‘loja em nome de uma mulher’, que com ele vivia naquela cidade, para além de outro ‘estabelecimento semelhante em Geba, mas que se encontrava em nome da sua própria mulher’.” Com efeito, Julião Soares Sousa confirmou, nessa época, a “existência de duas mulheres: uma a viver em Bafatá, que se trataria de Iva Pinhel Évora, e a outra, a ‘própria mulher’, que deveria ser a Ernestina Soares de Andrade, ao tempo residente em Geba com a sua, já nessa altura, numerosa prole.” Também, numa nota enviada à administração, a 23 de Dezembro de 1923, Juvenal dava conta que, “achando-se em férias, seguiria para Bafatá, ‘a fim de preparar uns documentos’ que lhe seriam necessários, pois tencionava ‘mudar de situação’.” Entretanto, passados nove meses, um novo facto de registo prendia-se com o nascimento de Amílcar Cabral, a 12 de Setembro de 1924, filho de Juvenal Cabral e Iva Pinhel Évora (Sousa, 2011: 41 e 49-50).

Tudo indica que, em 1926, após o fim da relação entre Juvenal e Ernestina, este passou a viver maritalmente com a Iva. Ali, em Geba, a 19 de Maio de 1927, nasceram as gémeas Armanda e Arminda. Também, tudo leva a crer que, em 1929, o casal já estava separado, sendo que, nesse ano, registaram e baptizaram os seus filhos, na Praia (Santiago). Nesse ano, Iva residia temporariamente no arquipélago. Porém, aquando da sua viagem à ilha, com intenções de ficar definitivamente, Iva encontrava-se grávida de António da Luz Cabral. No retrato abaixo, estampado no seu Bilhete de Identidade, que foi solicitado a 7 de Abril de 1930, na cidade da Praia, nota-se a figura de uma mulher elegante de vestido, colar grande no peito e cabelo longo e ondulado para trás e com uma risca na lateral esquerda da cabeça (cf. Chabal, 1983: 29-30; Almeida, 2004: 4; Sousa, 2011: 53-57).

Por dificuldades de readaptação, Iva regressou à Guiné, em 1930 ou 1931, “tendo fixado residência em Bissau, mais concretamente no bairro de Chão-de-Papel, onde [...] partilhou a mesma casa com o Juvenal e a sua nova família.” Ali, em precárias condições financeiras, Iva teria ocupado confeccionando coisas caseiras para comercializar no sector informal. Em 1932, Juvenal regressou definitivamente ao arquipélago de Cabo Verde, levando consigo Amílcar, Armanda e Arminda (frutos da sua relação com a Iva), uma vez que, talvez por motivos de saúde maternal e infantil, a sua esposa portuguesa Adelina havia permanecido em Santiago, desde o fim do primeiro trimestre desse ano, com o seu filho primogénito dessa nova relação (Luís Cabral, nascido em 10 de Abril de 1931). Tudo indica que Iva ficou na Guiné, “alegadamente impossibilitada de viajar por ter sido vítima de um roubo, que a obrigou a tentar refazer a sua vida antes de partir.” Mais ou menos um ano depois, em 1933 ou 1934, ela regressou ao arquipélago de Cabo Verde, fixando residência em Ponta Belém (Praia), e reassumindo a tutela dos seus filhos que estavam com o pai deles, no interior da ilha de Santiago (cf. Tomás, 2007: 49; Sousa, 2011: 56-66). Pedro Martins (1995: 173) assegurou que a conquista da custódia dos filhos não teria sido nada fácil: “quando a Dona Iva Pinhel Évora, mãe de Amílcar, ia visitá-lo, assim como aos outros filhos [...], eram criadas dificuldades imensas, e os meus avós tinham que interceder para que ela os pudesse ver. Geralmente, era em casa dos meus avós que a Dona Iva se encontrava com os seus filhos [...]. Amílcar [estava] muito atrasado nos estudos. Ela chorava, e Amílcar consolava-a naquele tom convincente que possuía desde criança: ‘Mãe não chore. Um dia hei-de fazer-te feliz’.”  

Tudo indica ainda que tinha sido, na Praia, que Amílcar iniciou os estudos, seguindo, em 1937, com a mãe e os restantes quatro filhos dela, para a ilha de São Vicente, a fim de frequentar o Liceu Gil Eanes, único que havia no arquipélago. Tal deslocação da Iva e de todos os seus filhos devia-se talvez à falta de familiar que pudesse acolher o seu filho estudante, que havia concluído a instrução primária com distinção (cf. Sousa, 2011: 67-94). Em São Vicente, atendendo às necessidades de subsistência e da educação dos filhos, Iva não se poupou a esforços. Na sua situação de mulher independente e chefe da sua família, teve que se desdobrar em várias ocupações, tendo sido não apenas operária numa fábrica de conserva de peixe, mas também costureira e lavadeira de militares portugueses, que estavam na ilha de São Vicente, durante a II Guerra Mundial. Em 1944, Amílcar concluiu o liceu, tendo regressado para a Praia, juntamente com a sua mãe e os seus irmãos.

A propósito, na única entrevista que concedeu, pouco antes da sua morte, em 1977, Iva Pinhel Évora deixou um testemunho da dureza dos dias passados: “cansei-me demais na máquina, na tina e no ferro; a trabalhar dia e noite porque não tinha auxílio do pai” (apud Lopes, 2002: 45; cf. Sousa, 2011: 44 e 92). Numa referência acerca do trabalho da sua mãe e da penúria que assolava o arquipélago, Amílcar Cabral (1974: 57) recordaria: “quando eu estava no liceu, a minha mãe [...] empregou-se na fábrica de conserva de peixe, porque a costura não dava nada. E sabem quanto é que ela ganhava por hora? Cinco tostões por hora, e, se houvesse muito peixe, podia trabalhar 8 horas por dia, ganhando 4 pesos (escudos). Mas se o peixe fosse pouco, (era preciso andar muito para chegar à fábrica) trabalhava uma hora e ganhava cinco tostões.” É importante reflectir que, neste apontamento de Amílcar Cabral, nota-se não só o reconhecimento dos sacrifícios de uma operária (e sua mãe), como a sua utilização propagandista contra o sistema colonial. Todavia, Iva pôde contar igualmente com os ordenados do seu “filho mais velho de outra relação, Ivo Carvalho da Silva [...], que havia frequentado ‘a escola de carpintaria e marcenaria’ [...] [e do seu filho Amílcar, que] dava explicações” (Sousa, 2011: 92). Justando todos esses esforços, Iva Pinhel Évora conseguiu garantir o sustento da sua família, num tempo de seca, de crise alimentar e de derradeira decadência do Porto Grande de São Vicente. Entre 1944 e 1945, já instalado na cidade da Praia, Amílcar ocupou-se como ajudante de tipógrafo na Imprensa Nacional. Seguiu para o ensino superior, em Lisboa, em 1945, tendo concluído o curso de Agronomia, em 1952, e fundado o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, nos anos cinquenta.

Ao que se sabe, “mãe e filho viram-se, pela última vez, em 1959” (Lopes, 2002: 45). Amílcar foi assassinado na Guiné-Conacri, a 20 de Janeiro de 1973. Na altura, Iva Pinhel Évora residia em Bissau, tendo deslocado ao país vizinho para o funeral do filho (Tomás, 2007: 284; cf. Ygnatiev, 1975; cf. Castanheira, 1995). Aquando da independência de Cabo Verde (5 de Julho de 1975), ela estava ainda viva. Morreu em Bissau, em Agosto de 1977.

(parte de um texto em construção)
--------------
ALMEIDA, José Maria (2004), “Subsídios para a Biografia de Amílcar Cabral”, in Horizonte (Sexta-feira, 17 de Setembro), pp4.
CABRAL, Juvenal (2002), Memórias e Reflexões. Praia: IBN.
CASTANHEIRA, José Pedro (1995), Quem Mandou Matar Amílcar Cabral. Lisboa: Relógio D’Água.
CHABAL, Patrick (1983), Amílcar Cabral: Revolutionary Leadership and People’s War. London: Cambridge University Press.
LOPES, José Vicente (2002), Cabo Verde: Os Bastidores da Independência. Praia: Spleen.
MARTINS, Pedro (1995), Testemunho de um Combatente. Praia e Mindelo: CCP.
TOMÁS, António (2007), O Fazedor de Utopias: Uma Biografia de Amílcar Cabral. Lisboa: Tinta-da-China.
SOUSA, Julião Soares (2011), Amílcar Cabral: Vida e Morte de um Revolucionário Africano. Lisboa: Nova Vega.

10/01/13

Mar-blues: sodade, oh mar, oh gente…II



No vulcão cozem os prazeres. A bandeira é tirada para cobrir a boca do vulcão para ninguém testemunhar a cozedura dos corpos. O cavaleiro leva a haste para servir de estrutura do foguete. Sulca montanhas e vales, navega pelas nuvens, proclamando a festa; gritos alegres encontram ouvidos em vários acasos da ilha. Pequenos montes e montanhas convivem aos sons dos pássaros que por lá aportam, sempre sob olhar vigilante do vulcão, o portão identitário. As estrelas cruzam o céu, mergulham nas nuvens timidamente; a lua sopra com lábios carnudos para o queixo do Minó di Mama. Que convencido a alma, vaidoso que ganha coragem com o violino, inventam gestos e gestas de cortês para o alvoroço das senhoras. A Miloca está quieta. Os seus olhos brilham na vertente da lua que o Minduca recolhe com desejo.

A bandeirona também é vagabunda. Deambula pelas ruas numa performance contagiante; os textos, os atores e o público harmonizam-se em verve colectiva numa harmonização horizontal. Todos são convocados. Todos proclamados senhores da festa. Todos transportam e transpiram energia. No rufar do tambor, no toque-toque do pilão e na dança-dança geométrica das senhoras. O Osvaldo manco, quedo no seu canto, faz de sofista qual sofisma! Qual etiquetas, qual quê! O homem canta e encanta; faz comício para as gargalhadas dos presentes. De bokarum, canizadi é só amizade. O vulcão é a música; é o público; é o texto.  Na ilha do Fogo, o tempo está colorido; tons vermelhos, verdes, azuis, de berrantes até cega as almas. Os convivas calcorreiam os espaços, de transeuntes anónimos de sorrisos abertos. Os carros voam com baterias de sons, descem do sopé do vulcão.

Enquanto isso, na greta do mar, os barcos sulcam o oceano. Balanceiam ansiosos para novas paragens. No sotavento, o vento é amarrado no lençol. Ventos acumulados e trabalhados para fazerem de batuques e tambores na ilha de Santiago.

Olha Santiago bem perto, de peito largo no seu cavalo. Bate com brio no cavalo e varre o tempo com prenúncios de bem-vindos. Badias tagarelam no pelourinho, de bocas aguçadas cospem paleio; «freguês, não queres nada», «produto barato e de qualidade». A classe média, nacionais e turistas, declina o convite; a moldura do corpo padronizado reprime qualquer diálogo social. (continua) 

09/01/13

«Alguém me arranje emprego. Bom bom.»

Tantos anos a estudar
para acabar
desempregad[a]
Ou num emprego da treta
mal pago
E receber uma gorjeta
que chamam salário
Não tirei o Curso Superior de Otári[a]
não é falta de empenho
Querem que aperte o
cinto mas nem calças tenho
Ainda o mês vai a meio
já eu 'tou aflit[a]
Oh mãe: fazias-me
era ric[a] em vez de bonit[a].

É sexta-feira

Suei a semana inteira
No bolso não trago um tostão
Alguém me arranje emprego
Bom bom bom bom
Já já já já! [...]

(BOSS AC, à minha maneira)


Idade: irreverente! Desde quando era criança, aprendi com a minha mãe que o livro é um amigo de todas as horas. Do meu pai, recebi a força de acreditar que da vida colhemos os nossos próprios frutos. Ele não era um camponês, nem um filósofo. Era um sonhador realista. Infelizmente, já não estão por cá para me meterem uma CUNHA (que dava-me jeito já já já já). Enfim, como sempre, vou ter que ir à luta (ladeira riba e ladeira baixo). À cata da sorte!

Dizem-me que tenho dois defeitos capitais: língua afiada e pé de sabão. E que isso «não é bom» para mulher. Bom, acho que sei como dar um jeito nisso. E então, agora sim, estou disposta a transformar tais defeitos em virtudes. Sonho à distância de um click: um mundo em casa, uma biblioteca em casa e uma oficina em casa. Isso não é domesticidade, é uma ideia de auto-emprego, mas, «no bolso, não trago um tostão. Os bancos só emprestam a quem não precisa.» Por isso, «alguém me arranje emprego, bom bom bom bom, já já já já!»

07/01/13

Vida e Paz


De alma vazia a vida é insípida
Ao som iluminado da verdade
Ambulante corpo afunilado no tempo
Na maçaneta da discórdia torna-se
Imaculado de sabedoria
A casa perfeita do demónio

Vida e paz
Só morre quem nasceu, cresceu e morreu
Se não viveu, não será imortal
Na memória minúscula de seres
Azedos de miséria de córdia
Na luz do papel afagado no silêncio

De alma vazia a vida é insípida
Só morre quem nasceu, cresceu e morreu
Se não viveu, não será imortal

Mar-blues: sodade, oh mar, oh gente…




I.      
       
O mar, para além de ser uma tela gigante, aporta memórias de outros tempos, lugares e sonhos. Traz ainda o sopro sinfónico que atravessa às ancas do tempo, na salutar festa de São João de moças de «rabolas» incandescentes na rosca-rosca com os rapazes da terra. Brios soltos no palavreado regional, no encontrão de sexos na peleja do refeitório pagã. Gestos sortidos e curtidos entram em transe. Mocinhos e mocinhas, de Santo Antão e São Vicente, recriam a tragédia na orgia, no caos de guerra fria. Os corpos se trançam; fermentam-se no pousio do desejo. Os ritmos frenéticos se intensificam em cada rufar do tambor. Trata-se de ritos de passagem. Os corpos disciplinados se indisciplina, quebra a rotina do dia-a-dia. As enxadas encontram a paz nesse dia, já não fere o chão. A brisa do mar sopra de mansinho para as ilhas; esfria os corpos e cristaliza os desejos. A carne é exorcizada com a mudança do tempo. A festa dá lugar ao trabalho. Aos afazeres domésticos. Os desejos da carne são mais secretos. Os corpos dos desejos voam para as suas casas, lugarejos da sua santidade. O sopro do mar, na contra corrente, cruza para outras ilhas. Vai ao Fogo para apagar o vulcão.

A bandeirona também exorciza os maus ares no rufar de tambor. No cotejar sincopados de sons fatigantes, de corpos curvos e trémulos que o grogue fermenta. A brisa do mar traz brio no corpo das ilhas. As várias almas do tempo, no compasso de um caminhar caótico, seguem em transe para vários vales, cutelos e cidades da ilha. O tempo metamorfosea a vida. Sacrifícios dos animais que choram a sua morte, de olhos arregalados que gotejam berros. Facas de golpes e em contragolpes, de corpos caídos no palanque da festa. Os caldeirões fumegantes e cantantes dão azia aos convivas, enquanto esses cheiram e snifam a morfina da fome. Na ilha do Fogo, a romaria começa ordenada com antecedência. Os patronos conspiram os desejos e consumos; arranjam a urbe para o carnaval fora do tempo. Líquidos brotam do vulcão, sacodem as almas no canavial de São Filipe. No sopé do vulcão faz-se os primeiros acordes para uma nova largada. O sentido é cruzar vários pontos das ilhas no salutar momento harmónico de convívios. A bandeira é desenterrada para vencer o céu. Bradar ao céu para dialogar com o sol e a lua. A lua «noba» de corpos de desejos que se hospedam no vulcão. (continua). 

05/01/13

Eu e a loucura de mão dadas


                       Eu e a loucura de mão dadas

                            Eu e a loucura de mão dadas! 
     Numa tarde após a chuva, o ambiente cinzento de névoa, o barulho das trovoadas, e uma luz que aparece de repente, e a loucura continua ... 
    A loucura deixa em mim o poder de voar, de ver o impossível de tocar o intocável, de desvendar os mistérios, o triste dessa felicidade é fazer de mim, o ser que eu não sou. 
    Voltando em mim e a minha tristeza, fico cego de tanto ver e não vejo o que eu quero ver, de tanto crer e não poder tocar, sinto um vazio sem a minha loucura...! 
    O mal de tudo isso é que eu não posso ficar sempre de mão dadas a loucura, a lucidez me traz a imperfeição, faz de mim um prisioneiro da procura sem limite, a resposta de um é a pergunta de outra... 
         Mas porque? Porque ? Pois é, ai vem mais perguntas, 
     Com a loucura eu sei de tudo, o tudo que não é nada, a existência do nada me preocupa porque é dai que vem o tudo. O tudo é a vida que me leva até a morte ou o tudo é a vida que me leva até a loucura. Tudo é abraçar a loucura, viver a vida e ver a morte como um agradecimento. 
     Ainda bem que eu dei a mão a loucura porque se não seria um louco. 
                                 Vamos dar mais uma volta, vamos. 
                                   Eu e a loucura de mãos dadas.